A licitação que entregou o contrato milionário do transporte coletivo urbano de Campo Grande foi direcionada para o Consórcio Guaicurus vencer. A fraude foi detalhada pelo advogado que ajudou os empresários, Sacha Reck, em acordo de colaboração com o Ministério Público do Paraná que se tornou público em 2017. A delação foi obtida com exclusividade pelo Jornal Midiamax.
Um dos responsáveis pela formação do Consórcio Guaicurus, o advogado paranaense confirmou que houve direcionamento na licitação do contrato dos ônibus de Campo Grande, realizada em 2012, no final da gestão de Nelson Trad Filho (PSD) como prefeito.
Na delação, Reck relata que atuou, na capital de Mato Grosso do Sul, com o mesmo esquema utilizado em diversas cidades do país para fraudar licitações dos serviços de ônibus em cidades brasileiras. Fora de MS as investigações caminharam e Sacha já foi condenado por improbidade no Distrito Federal.
De acordo com investigações do Ministério Público do Paraná, o esquema funcionava de modo que tudo era combinado entre empresários, advogados e funcionários públicos. Eles definiam em conjunto como seria o texto dos editais de licitação para garantir a vitória das empresas que faziam parte da fraude.
Mobilidade urbana: mina de ouro
No início da década passada, ainda na gestão do presidente Lula, uma forma de os municípios angariarem recursos para obras era através do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), que tinha investimentos na área de mobilidade urbana. Em 2010, ano de eleições estaduais e federais, a Prefeitura de Campo Grande teve acesso a uma linha de crédito no valor de R$ 55 milhões para melhorar o transporte da cidade.
Apenas dois municípios brasileiros foram favorecidos, naquele ano, com o programa nacional batizado de mobilidade urbana: a Capital sul-mato-grossense, comandada por Nelsinho Trad, e o Rio Janeiro, chefiado por Eduardo Paes. Ambos os prefeitos eram filiados ao MDB à época.
A partir de 2013, a investigação do Ministério Público do Paraná revelou que a Logitrans, empresa que tinha como sócio o engenheiro Garrone Reck, era contratada pelas prefeituras para fazer o estudo de mobilidade urbana, que antecede a licitação. Em Campo Grande, a empresa foi responsável pelo termo de referência e da proposta técnica do Plano Diretor de Transporte e Mobilidade Urbana, tendo sido contratada em 2007 pelo município. O plano só foi sancionado em 2015.
Em outra ponta do “esquema”, seu filho, Sacha Reck, prestava assessoria para as empresas de ônibus interessadas em participar da concorrência, geralmente das famílias Constantino e Gulin. O que foi feito pelas empresas que formariam o Consórcio Guaicurus, em contrato assinado no dia 15 de janeiro de 2011, mais de um ano antes do lançamento do certame em que seriam vencedoras.
Para garantir o sucesso da empreitada, Sacha interferia na elaboração do edital, com a ajuda de funcionários das prefeituras. O que ele também confirmou ter acontecido em Campo Grande, relatado em acordo de delação premiada com os promotores de Justiça do Ministério Público do Paraná, no âmbito da Operação Riquixá.
A delação
O depoimento de Sacha Reck foi prestado em 13 de julho de 2016, mas se tornou público por decisão judicial em março de 2017. A Justiça levantou o sigilo depois que o Ministério Público do Paraná apresentou denúncia contra o advogado paranaense como integrante de uma organização criminosa que atuava em vários municípios para fraudar licitações de transporte.
A colaboração premiada tem um capitulo inteiro sobre a fraude em Campo Grande, com 33 páginas.
Aos promotores Vitor Hugo Nicastro Honesko e Leandra Flores, que atuam em Guarapuava (PR), Sacha Reck informou que o primeiro contato com os empresários do transporte coletivo de Campo Grande foi uma consulta sobre a possibilidade de prorrogação do contrato de concessão que estava em vigor com a Assetur (Associação de Empresas do Transporte Coletivo Urbano), e terminaria em 2014.
Após analisar o contrato, o advogado informou que não poderia haver a prorrogação, e defendeu que um novo acordo deveria ser celebrado. Após isso, a Prefeitura e a Assetur romperam o contrato amigavelmente de forma antecipada com a justificativa de que não seria possível as empresas fazerem investimentos na cidade com o contrato prestes a vencer.
Edital antes da publicação
Já pensando na nova licitação que deveria ser realizada, as empresas contrataram Sacha Reck, no dia 15 de janeiro de 2011, para formar o consórcio e assessorar no processo licitatório que estava por vir.
Na delação, Sacha Reck conta que teve acesso a uma minuta do edital da nova concorrência, antes de sua publicação. E, junto de outro advogado, fez a sua revisão.
“Na verdade, o edital era tão complexo, como eu repito aqui, que até para nós foi difícil de entender”, relata Reck. Ele diz que uma pessoa da Assetur fez o seguinte comentário após analisar o edital: “Ó, nós tamos fudidos, que nós não vamos conseguir, isso aqui. Nós não vamos dar conta de cumprir”.
‘Trabalho de ourives’ no edital
Segundo Reck, para preparar o caminho dos clientes, foi feita uma revisão na parte técnica do documento, referentes a prazos de implantação de sistemas, como venda dos passes de ônibus.
Questionado se havia recebido a minuta de um servidor da Prefeitura, o delator diz que não sabia quem “passou” o documento, mas que achava ter recebido de João Resende, que fez parte da diretoria da Assetur e atual diretor-presidente do Consórcio Guaicurus. Isso a poucos dias da publicação do edital, deixando-o com prazo curto para fazer a “revisão”.
“Então foi um trabalho mais de ourives nosso ali, de tentar deixar umas sugestões que dessem um pouco mais de objetividade e coerência para uma eventual proposta”, explicou Reck.
Após a publicação do edital, Sacha Reck diz que trabalhou na formação do Consórcio Guaicurus e na organização dos documentos das empresas integrantes do grupo, formado pela Viação Cidade Morena Ltda (empresa Líder), Viação São Francisco Ltda, Jaguar Transporte Urbano Ltda e Viação Campo Grande Ltda.
‘Sabe como é político…’
O advogado ainda detalhou que, quando estava focado nas questões burocráticas, foi informado por um representante das empresas de ônibus que a Prefeitura de Campo Grande exigiu que a concorrência deveria ter, pelo menos, uma segunda empresa na disputa, além do Consórcio.
“Aí no meio do caminho vem esse… O pedido da prefeitura, totalmente despropositado e sem lógica, mas cabeça de político a gente não, não né?! Os caras têm na cabeça na cabeça deles que… Um só Consórcio é monopólio e três não é monopólio. Depende, depende se, se as áreas são exclusivas de cada um, é um monopólio. Eles pensam que participar três empresas ou quatro ou cinco é atestado de regularidade. E não é isso, né? Quem é advogado sabe, mas enfim…”, relatou Sacha Reck.
Diante dessa nova exigência, o desafio foi conseguir encontrar uma empresa com capacidade para concorrer na licitação, já que o edital estipulava uma frota com mais de quinhentos ônibus. Sacha ficou com a incumbência de resolver essa situação.
‘Constantino mete medo’
Após avaliar possibilidades, a solução encontrada foi convidar a Auto Viação Redentor, de Curitiba, que topou fazer parte do negócio. Questionado pelos promotores se a empresa ganhou dinheiro para entrar na disputa, Reck respondeu negativamente. E disse que acreditava ser vantajoso para a firma fazer esse favor às empresas do grupo Constantino e ser beneficiada em uma licitação futura.
Para impedir similaridades nas propostas a serem apresentadas, e evitar a desclassificação no certame, toda parte da habilitação e questões comerciais da Viação Redentor foi feita de forma independente do grupo representado por Sacha Reck.
O Consórcio Guaicurus ofereceu um projeto de 75 páginas e pagamento de R$ 20 milhões à Prefeitura de Campo Grande para explorar o transporte coletivo do município, enquanto a Auto Viação Redentor propôs pagar R$ 11,2 milhões, em seu projeto de 15 folhas.
No fim, em agosto de 2012, foi anunciado que o Consórcio Guaicurus saiu vencedor da licitação para explorar o setor por mais 20 anos, com previsão de faturar R$ 3,4 bilhões neste período.
Grupo criminoso em Campo Grande, investigação no PR
Ao Jornal Midiamax, a promotora Leandra Flores, que coordena o Gepatria (Grupo Especializado na Proteção ao Patrimônio Público e no Combate à Improbidade Administrativa), informou que as investigações sobre a atuação da organização criminosa envolvida em fraudes a licitações de transporte coletivo, inclusive em Campo Grande, seguem onde tiveram início as apurações.
“A apuração criminal é atribuição do GAECO/GEPATRIA de Guarapuava em relação a todos os fatos praticados pela organização criminosa que Sacha compunha”, disse a promotora. Segundo ela, ao fazer o acordo de delação, Sacha Reck afirmou que o grupo criminoso atuou em Campo Grande.
Leandra Flores destaca que, no âmbito cível, as investigações deveriam ficar a cargo do Ministério Público de Mato Grosso do Sul. A reportagem entrou em contato com a assessoria do órgão sul-mato-grossense, na última sexta-feira (26), para saber se há apuração em andamento aqui no Estado, mas ainda aguarda resposta.
Mesmo com as investigações paralisadas do fim de 2017 ao fim de 2018, por questionamentos a respeito de competências judiciais, tramitam em decorrência da Operação Riquixá cinco ações penais perante a 1ª Vara Criminal de Guarapuava.
Há, também, três ações civis públicas tramitando na 1ª Vara da Fazenda Pública de Guarapuava e uma ação civil pública tramitando na Vara da Fazenda Pública da Comarca de Paranaguá. Há notícias, também, de apurações cíveis tramitando em diversas comarcas de estados diferentes tratando da repercussão cível da mesma investigação.
Condenação no DF
Sacha Breckenfeld Reck foi condenado pela Justiça do Distrito Federal por envolvimento no esquema de fraude em licitação para o transporte público na capital do país. Ele terá de ressarcir os cofres da capital federal em R$ 744 mil, além de ter os direitos políticos suspensos por cinco anos e estar proibido de contratar com o poder público pelo mesmo período. Cabe recurso.
De acordo com o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Sacha Reck foi contratado, em 2011, pela Secretaria de Transportes para atuar na concessão de serviços de transporte público coletivo da cidade.
Reck foi admitido como consultor jurídico, mas, na prática, atuava como instância decisória da comissão de licitação – elaborava pareceres e minutas, respondia questionamentos e analisava recursos administrativos. Ao mesmo tendo em que tinha vínculo profissional com uma das participantes da licitação que venceu um dos lotes, o que é proibido pela Lei de Licitações e Contratos.
A licitação acabou anulada, em 2016, por decisão judicial da 1ª Vara da Fazenda Pública do Distrito Federal.
A reportagem tentou contato por telefone com o diretor-presidente do Consórcio Guaicurus, João Resende, durante a terça-feira (30), mas as ligações não foram atendidas, nem houve retorno até a publicação desta reportagem. Assim que houver alguma manifestação do grupo de empresários, ela será publicada.
O Jornal Midiamax não localizou Sacha Reck ou sua defesa para comentar sobre a condenação no Distrito Federal, e as ações que responde na Justiça do Paraná.