As denúncias de fraude no contrato de concessão do transporte coletivo coletivo urbano em Campo Grande se acumulam desde que o Consórcio Guaicurus ganhou a licitação, no fim do último mandato de Nelson Trad Filho (PSD) como prefeito, em 2012. Agora, todos os problemas relatados por passageiros, funcionários e servidores públicos foram alvo de trabalho pericial que embasa duas ações na Justiça com a cobrança de R$ 500 milhões de indenização.
Os processos judiciais foram iniciados pela Associação Pátria Brasil, presidida pelo vereador Vinícius Siqueira (PSL), de Campo Grande. No processo, o grupo empresarial terá que responder por suposto enriquecimento ilícito na exploração da concessão pública, e pelo descumprimento de previsões contratuais. O político diz que não tem ‘intensões eleitoreiras’, e justifica a opção pela ação na Justiça com a dificuldade de mobilizar órgãos responsáveis contra os desmandos do Consórcio Guaicurus.
Agências sob suspeita e MPMS ‘em diligências’
Mesmo com vários indícios de irregularidades e até mesmo flagrantes denunciados em reportagens do Jornal Midiamax sobre a atuação do Consórcio Guaicurus, por exemplo, a suspeita de descumprimento sistemático das regras da concessão pública recebe pouca ou nenhuma atenção nas instâncias que têm responsabilidade legal de fiscalizar ou regulamentar o contrato, como Agereg (Agência Municipal de Regulação dos Serviços Públicos) e Agetran (Agência Municipal de Transporte e Trânsito).
No Ministério Público Estadual de Mato Grosso do Sul, há dificuldade até mesmo para saber de fato quantos procedimentos correm ou foram concluídos sobre as denúncias contra o Consórcio Guaicurus e até membros do órgão admitem que a morosidade não é adequada à gravidade das denúncias e aos danos que supostamente continuam ocorrendo contra a coletividade em Campo Grande. Várias promotorias com áreas de atuação diferente poderiam e deveriam agir com relação às inúmeras reportagens publicadas.
Nesta semana, o MPMS informou que ainda tramita na 30ª Promotoria de Justiça da Capital inquérito sobre o suposto direcionamento do processo licitatório de concessão do transporte coletivo, realizado oito anos atrás.
As denúncias chegaram a ser comunicadas oficialmente aos promotores sul-mato-grossenses pelos colegas do Paraná e, em julho de 2019, foram reveladas com exclusividade pelo Jornal Midiamax, que teve acesso à delação com detalhes sobre como o Consórcio Guaicurus teria fraudado a licitação para ficar com o contrato milionário.
Nove meses depois da reportagem, conforme o MPMS, o procedimento continua ‘em fase de diligências’. Segundo o Ministério Público, estão sendo aguardadas oitivas de testemunhas e delatores que vivem em outros estados.
Já na 31ª Promotoria de Justiça, tramita inquérito civil referente as multas aplicadas ao Consórcio. Conforme denúncia, multas aplicadas entre 2017 e 2018 não haviam sido pagas até o final de 2018. Alvo de 2.200 multas de trânsito aplicadas pela Agetran (Agência Municipal de Transporte e Trânsito), as empresas integrantes do consórcio estariam postergando o pagamento usando inúmeros recursos.
Além da morosidade nos procedimentos do MPMS, e da ‘compreensão’ nas agências municipais, implicadas em suspeitas de omissão e cumplicidade, o Consórcio Guaicurus tem a favor também a postura dos vereadores de Campo Grande, que rejeitaram mais de uma vez a abertura de uma CPI dos Ônibus e aprovaram o parcelamento até do ISSQN para os empresários.
Representada pelo advogado Pedro Garcia, a Associação informa na ação que acreditava na instauração da CPI do Consórcio Guaicurus que, apesar das inúmeras notícias divulgadas sobre superlotação, ônibus parados e antigos rodando, não prosperou.
Laudo pericial comprova denúncias graves
O pós-doutor em Engenharia de Transportes pela USP (Universidade de São Paulo) Daniel Anijar foi contratado para realizar perícia no contrato, que apontou diversas irregularidades como cobrança por quilômetros ociosos, valor de aumento do diesel em R$ 2,18 quando a ANP (Associação Nacional do Petróleo) apontou custo de R$ 1,96 para o combustível, encarecendo o valor do transporte coletivo em 2013, além da falta de comprovante de pagamento do valor da concessão.
Apesar de ter um contrato de 20 anos para explorar o serviço com arrecadação calculada em R$ 3,4 bilhões ao longo dos anos, o Consórcio precisa pagar R$ 20 milhões em parcelas diluídas pelo contrato. O repasse do valor, no entanto, chegou a ser suspenso pelas empresas sob justificativa de defasagem no valor da passagem.
A perícia aponta que o Consórcio arrecada, em média, R$ 178 milhões ao ano, com valor de outorga de R$ 1 milhão ao ano, o que representa 0,56% do total a ser arrecadado em passagens de ônibus ao longo dos anos.
Recálculo da tarifa e busca e apreensão
Uma das ações civis públicas pede que o Consórcio cumpra, de farto, o contrato e recalcule o valor do passe de ônibus após a perícia apontar as supostas irregularidades na composição da tarifa, além do cumprimento de limite de quilometragem ociosa prevista no contrato, de 8%, fiscalização da Agetran (Agência Municipal de Transporte e Trânsito) impedindo que os veículos sejam estacionados ao lado dos terminais, seja obrigada a retirar a frota velha de circulação, mostre os comprovantes de pagamento da outorga do serviço à Prefeitura de Campo Grande e implementação de integração adequada do serviço.
A outra ação pede busca e apreensão de documentos como balanços contábeis e contratos de publicidade, além de laudos de manutenção e abastecimento da frota na sede das empresas do Consórcio, e de indenização por dano moral coletivo no importe de R$ 500.000.000,00, cujos valores deverão ser revertidos ao Município de Campo Grande.
Enriquecimento ilícito
A Associação aponta suposto enriquecimento ilícito da Assetur, que apesar de integrar o grupo econômico do consórcio demandado, não seria parte integrante do contrato administrativo de concessão pública, mas estaria se utilizando ‘sem qualquer legitimidade do objeto licitado para obter vantagem econômica por meio de comercialização de anúncios publicitários’.
A ação também revela suposto desvio de finalidade dos veículos da frota do grupo para a locação dos ônibus integrantes da frota para a execução de serviços públicos para um colégio particular, havendo cobrança de um valor de R$ 410,00 para operação.
Em áudio gravado anexo aos autos, a empresa cobraria para o fechamento do negócio que o pagamento fosse realizado apenas em dinheiro, ‘ou seja, de forma a possibilitar a não emissão de nota fiscal e abstenção de declaração da receita para a administração pública’, diz a ação.
Dano ambiental
A perícia destacou dos documentos utilizados para os cálculos de reajuste tarifários que o Consórcio Guaicurus usa, desde 2014 de 70% a 80% o diesel comum (S-500), mesmo posterior à resolução do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) sobre utilização do diesel S10, que possibilita a redução das emissões de material particulado em até 80% e de óxidos de nitrogênio em até 98%, resultando substancialmente mais benéfico ao meio ambiente quando comparado ao diesel comum.
As informações do documento de engenharia de tráfego já chegaram ao conhecimento do Ministério Público Estadual de Mato Grosso do Sul. Uma cópia do laudo está na Supervisão das Promotorias Especializadas de Campo Grande e aguarda distribuição para uma das Promotorias de Justiça do Patrimônio Público.